quinta-feira, 1 de novembro de 2018

POESIA PARA CONTEMPLAR


A noite dissolve os homens

Carlos Drummond de Andrade

A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu.  Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
 a noite espalhou o medo
 e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
 sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
 que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho.
na noite A noite é mortal,
 completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
 diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
 apagou os almirantes
 cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
 O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.

Aurora,
 entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais ascender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
 para colorir tuas pálidas faces

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